República
Hidrográfica, que coisa é essa?
Somente quem tem consciência do
papel histórico, participar do plenário de um comitê de bacia hidrográfica é
privilégio e uma honra. Quem vê o comitê de bacia como balcão de negócios e
trampolim é uma triste figura. Parece milagre que no Brasil, onde a Colônia e o
Império deixaram forte herança centralizadora, com continuidade
presidencialista, tenha sido aprovada a Constituição Federal de 1988 e uma
legislação democrática como a lei federal 9433/1997 (lei das águas).
Evidentemente, que isto aconteceu como parte da resposta da sociedade ao
período da ditadura militar (1964-1985). Temos que ficar ligados e mobilizados.
Estas conquistas estão sendo sabotadas na maioria dos estados brasileiros, por governos
e segmentos sociais. Elas podem ser revogadas numa eventual reforma da
legislação, por ser muito avançada para os padrões oficiais brasileiros. Os
principais partidos políticos brasileiros não a respeitam nem entendem o
alcance do que aprovaram. Apenas uma minoria da população brasileira sabe que
existe e menos ainda a sua utilidade.
A lei 9433 diz que a água é um
bem público e coloca a sua gestão ao alcance dos moradores das bacias
hidrográficas. A lei promove o sistema participativo e compartilhado de
decisões nos Comitês de Bacias Hidrográficas (CBHs ou Comitês), de forma
descentralizada. Essa ampliação do espaço de prática do diálogo, sendo
propiciado no interior do próprio aparelho de Estado, tem significativa
importância histórica e é excepcional. A lei manda que os três segmentos
busquem, no sistema de governança dos comitês de bacia, focar nas soluções dos
conflitos sobre os usos múltiplos da água, sua qualidade e quantidade,
arbitrando-os e planejando-os de forma compartilhada. Manda que os empresários,
a sociedade civil e os níveis federativos de governo assentem para deliberar no
interesse comum, como num condomínio. É um caminho de construção democrática do
maior significado histórico e político, a ser pavimentado. Apesar de incipiente
este modelo passa mesmo a ser inspirador de nossa política mais geral. Até
mesmo um modelo alternativo ao esquema partidário de disputas eleitorais
focados na exacerbação dos conflitos, de caráter competitivo e destrutivo,
raramente visando o bem comum. O espaço democrático aberto pela lei 9433/97 faz
surgir, utopicamente, a ideia da República Hidrográfica, diante do colapso do
sistema baseado na lógica de disputa partidária do poder.
E nasceu um novo território e um
novo eixo, possibilitando criar estratégias e metodologias novas de
desenvolvimento. Pela primeira vez em nossa história, é possível fazer a gestão
pública demarcando um território ambientalmente coerente segundo princípios
universais, fundados na linguagem das águas e das bacias hidrográficas. De uma
só mexida se demarcou um território de planejamento e gestão e introduziu a
água como eixo estruturante de uma política ambiental. Será que a maioria dos
legisladores percebeu o alcance histórico de suas decisões? E a maioria dos
membros dos CBHs sabe com o que está lidando? A maioria dos governantes rejeita
os CBHs e desconfia do recorte democrático e descentralizador de suas decisões.
Estamos diante do embrião de um novo paradigma a ser plenamente desenvolvido,
estimulante de nossa imaginação. No entanto, apenas uma parcela muito restrita
da sociedade brasileira já ouviu falar em comitê de bacia hidrográfica. Isto
precisa ser revertido urgentemente, com mobilização na gestão, não como mera
propaganda, com seriedade dos membros dos comitês e sem copiar os casos de maus
exemplos de partidos, ongs e consultores. Desde o século XVI, as capitanias
hereditárias dividiram o Brasil em faixas demarcadas do litoral ao interior não
se respeitando as demarcações naturais e, na sequencia, à subdivisão em
sesmarias e fazendas, que se tornaram povoados e cidades, futuras bases dos
distritos eleitorais. Esta violência geográfica persiste até hoje contra as
águas, a biodiversidade e as culturas dos povos indígenas. É um estorvo ao
planejamento e gestão do desenvolvimento brasileiro com sustentabilidade.
O que é e significa uma bacia hidrográfica? A bacia hidrográfica é o espaço
geográfico com base na plataforma geológica, com divisores de água, compondo
uma biodiversidade de flora e fauna, que recebe e direciona as águas que recebe
das chuvas e produz energia com a luz solar, alimentando a vida de
ecossistemas. É tão importante o território de bacia hidrográfica que
impressiona a lei 9433 ter chegado somente em 1997, obscurecida que ficou pela
divisão política-administrativa federativa oriunda das capitanias hereditárias.
Nos recentes debates sobre o Código Florestal pouco se falou de bacia
hidrográfica e os CBHs perderam uma ótima chance de assumirem o protagonismo.
Isto porque a lei federal 8171 de 1991, Lei Agrícola Brasileira, diz no art. 20
que: “As bacias hidrográficas constituem-se em unidades básicas de planejamento
do uso, da conservação e da recuperação dos recursos naturais”. Lembrando que,
na visão ecossistêmica, os comitês precisam fazer a gestão pela conservação da
biodiversidade. Não se trata de administrar os múltiplos usos visando somente
interesses econômicos imediatos. É entender que se morrerem os ecossistemas não
haverá água nem vida, o sistema não se sustenta se morrer.
Os seres humanos vivem nas bacias
hidrográficas comportando-se como seres extraterrestres. São orgulhosos, não se
enxergando como animais que comem, vivem e morrem dos produtos dela, como
peixes fora d’água. Não associam seus destinos aos das bacias hidrográficas.
Esta nossa espécie ainda não entendeu bem o alcance do pensamento de Charles
Darwin. Sem a visão ecossistêmica de bacia hidrográfica, sem pensar a
integralidade do seu significado, a gestão baseada nos múltiplos usos funcionam
como retirada permanente de insumos de um depósito de material de construção.
Mas a bacia hidrográfica não é uma caixa d’água, não é mero canal de escoamento
da água superficial e subterrânea das chuvas para usos antropocêntricos. Essa é
uma visão muito limitada da vida na Terra, que dissocia seus componentes. Sem
ecossistemas vivos não haverá os tais “insumos”. Os sinais da escassez de água,
em condições de acessibilidade aos seres vivos, pela destruição da
biodiversidade e do solo, estão muito evidentes, assim como a morte das
nascentes, rios e lagoas. Esta é uma questão do âmbito das decisões dos CBHs.
Mas a maioria dos comitês está caindo na armadilha suicida economicista.
Como votam os conselheiros do
setor empresarial e governamental? No caso de uma votação entre os interesses
do meio ambiente e de suas empresas ou governos, votariam como? Eles votariam
em defesa do rio ou na defesa corporativa dos seus segmentos? Esta pergunta,
aparentemente ingênua, se presta para alimentar o debate ideológico e mostrar
os limites reais do rotineiro discurso da sustentabilidade e da postura dos
conselheiros. Há uma postura ética a ser construída nos comitês. Na eleição dos
membros de um CBH, cada segmento regimentalmente elege seus representantes e
depois este plenário elege a diretoria do CBH. Após a eleição, o plenário e a
diretoria deveriam firmar um compromisso ético de priorizar a defesa consciente
do rio e não dos seus setores de origem. É inaceitável a postura de prejudicar
a bacia hidrográfica para beneficiar os negócios de um segmento. Não há
contradição entre os interesses de empresas e os demais grupos de interesses
quando se pensa em médio e longo prazo e em sustentabilidade. Assim como um
presidente de um país deve pensar no país para todos e não somente para seu
partido ou setores sociais específicos. Um rio conservado e em recuperação
hidroambiental, será melhor para todos. Mas não é este o único problema dos
comitês.
A cobrança pelo uso da água bruta
para fins econômicos, instrumento de gestão previsto em lei, possibilitou a
organização e contratação das agências de bacia para o papel de braço executivo
dos comitês, por decisão dos CBHs e delegação do estado, para cumprir a lei
9433/97 e o Sistema Nacional de Gestão dos Recursos Hídricos. As agências
dispõem de 7,5% dos recursos da cobrança para organizar seus escritórios,
criando uma infraestrutura operacional de caráter técnico, administrativo e
financeiro forte. O poder de executar os projetos aprovados pelos comitês,
contratados em licitações, tornam a agência uma referência direta para as
empobrecidas entidades representadas nos comitês. Ao lado desta máquina
poderosa, as plenárias e as diretorias dos comitês reúnem-se apenas algumas
vezes por ano, morando distantes e se vendo esporadicamente. Passam os dias em
seus outros afazeres profissionais para sobreviver, sem as condições
empresariais de dedicação integral dos funcionários das agências. As diretorias
dos comitês não podem, atualmente, receber salários para se dedicarem à direção
dos comitês. Na medida em que a diretoria de um comitê não está ligada diariamente
às atividades dos comitês, fica sem meios para o efetivo exercício do poder
legalmente atribuído. Este poder passa a ser exercido, de fato, pelas agências,
reunida diariamente e com efetivo acesso aos profissionais, aos recursos,
comunicando-se com todos os membros dos comitês, devido ao sistema de
comunicação e instalações do escritório. Produz-se, então, uma inversão de
papéis de efeito politicamente degradante ao funcionamento do conjunto do
sistema. Quem dirige quem, e como isto se dá, é a questão importante que deverá
pegar nos debates dos CBHs. Tem algo estranho nesta engenharia da relação entre
os CBHs e as Agências, inclusive intervenções indevidas. Mas, eventuais
cooptações de diretores dos CBHs, não têm condições políticas de prosperar por muito
tempo.
No caso da bacia do Rio das
Velhas, por exemplo, apesar de estar arrecadando acima de 10 milhões anuais, a
Agência não tem disponibilidade financeira para alugar uma sede para o CBH
Velhas. Os 7,5% já estariam comprometidos. Nessas circunstâncias, o comitê não
tem como funcionar. Uma agência tem todos os recursos para manter sua sede,
definir as viagens prioritárias, tomar iniciativas de maneira ágil, mas o
comitê tem que pedir e esperar. O comitê mobiliza e tem a representatividade,
enquanto a agência administra e opera o poder administrativo-financeiro gerado
pelo dinheiro da cobrança com relativa autonomia. Esta situação pragmática pode
subverter o exercício democrático do sistema e coloca o comitê de joelhos.
Deformação análoga acontece entre eleitor e governo eleito, entre a origem do
poder e o poder de fato do estado, exercido por quem controla diretamente os
meios. Pode-se comparar um comitê com a luz; e uma agência com o raio laser. O
fortalecimento dos comitês, inclusive por meio das agências, é essencial. Os
comitês instituíram as agências e elas podem assegurar maior autonomia e
agilidade às decisões dos comitês, diante da burocracia e do centralismo
estatal. Mas os comitês precisam assegurar o controle de sua criatura. Por isto
é necessário e urgente aperfeiçoar o sistema e evitar a inversão dos papéis que
acontece quando os comitês ficam sem capacidade de intervenção política ágil.
As diretorias dos comitês teriam que exercer um papel mais determinante nos
conselhos de gestão das agências ou algo do gênero. Não dá mais para amortecer
esta linha de cobrança política.
Também não é função dos comitês e
agências, usar os recursos da cobrança para fazer obras que são obrigações
legais dos entes federativos. Nem admitir, sem forte resistência, que recursos
como do FHIDRO – Fundo de Recuperação, Proteção e Desenvolvimento Sustentável
das Bacias Hidrográficas, sejam desviados de sua destinação legal exclusiva. O
FHIDRO é oriundo do pagamento obrigatório de empresas hidrelétricas por áreas
inundadas. Governos de vários estados, como Minas Gerais, estão se apropriando
indevidamente dele no caixa único do Estado, fazendo o contingenciamento destes
recursos e aplicando-os fora do planejamento e decisão dos comitês, como se
recursos orçamentários fossem. A pergunta é: em que aplicar os recursos, tanto
do FHIDRO quanto da cobrança? Que sentido tem tirar este poder de decisão da
esfera política dos CBHs? A quem interessa esta política de enfraquecer os CBHs
em suas diversas dimensões?
O entusiasmo com a gestão
compartilhada e descentralizada não esconde as dificuldades existentes no
exercício cotidiano desta política. Assumimos estas dificuldades como inerentes
ao processo de transformação da sociedade brasileira. As diferenças precisam
ser explicitadas para construir convergências. Os discursos de amor aos rios e
às águas frequentemente são mesquinhos quando se vê, claramente, seus autores
buscando apenas mais água para seus interesses imediatos em ganhos econômicos.
Gostam de si mesmos, mas procuram aparecer como “defensores” do rio e,
assumindo rosto de paisagem, não assumem o óbvio: os múltiplos usos do solo, e
das águas de uma bacia hidrográfica, precisam levar em conta a capacidade do
ecossistema (bacia hidrográfica), se manter vivo. A bacia é como uma vaca: se
tirar o leite intensamente sem alimentá-la e respeitar seu direito à saúde e ao
descanso, ela vai sucumbir. Em outras palavras, os CBHs precisam conversar com
a vaca! Os conselheiros precisam, ao defender seus segmentos, respeitar a
capacidade da bacia hidrográfica e ter consciência de que há limites a serem
respeitados em comum acordo. E sem esquecer os animais, que dependem da água
limpa para sobreviver. É a função ecológica dos rios e lagos. Os rios não são
apenas para a espécie Homo sapiens. Não se pode atender a todos em tudo, o
tempo todo, é necessário compartilhar e combinar, entre si e com a “vaca”. Só
assim o amor aos rios não será discurso tão falso. Manuelzão Nardi, personagem
vivo de Guimarães Rosa, dizia o seguinte: “não tenho medo da morte, porque sei
que vou morrer um dia; tenho medo é do amor falso, que mata sem Deus querer”.
Com base nas propriedades do
ciclo hidrológico, os CBHs têm a missão de pensar globalmente. As águas ensinam
a lição de viver sem fronteiras nacionais, suas moléculas cruzam oceanos e
continentes, épocas e seres, são absolutamente universais. Assim são os ventos,
as correntes marítimas, os peixes, os pássaros e os seres humanos. A Terra só
pode ser compreendida como uma bacia hidrográfica, síntese do território global,
países são detalhes históricos. A Terra se subdivide em sub e micro bacias em
escala de grande capilaridade, até os mais íntimos rincões de nossas moradas,
com a linguagem universal das águas.
Encerrando, abordaremos a grande
questão. Podemos, sobre os meios físicos e vitais, das águas e bacias, criar
uma estratégia e uma metodologia de ação política e social, como mostraremos a
seguir. A estratégia é de mobilização social com eixo nas águas, definindo
assim o território organizador do planejamento e da gestão das políticas
públicas. Já a metodologia deriva do papel universal das águas, envolvendo o
ciclo hidrológico e as características desta substância, devido às
características moleculares excepcionais da água. As águas de uma bacia podem
refletir a nossa cultura – “o espelho d’água mostra a nossa cara”. Sendo
conhecimento que flui, a água permite leituras diversas do contexto físico e
cultural nos seus parâmetros geográficos, inclusive o monitoramento da
qualidade da gestão e da mentalidade prevalente na região hidrográfica. A vida
começou nas águas e a humanidade se reencontrará nas águas.
A água pode contribuir, assim,
para a construção de um movimento mundial de consciência, tendo como eixo
motivador, e estruturador, a gestão das bacias hidrográficas em escala
planetária e ecossistêmica. Sem reduzir o alcance desta mobilização a aspectos
puramente técnicos e econômicos. As bacias são centros motores da vida para
todos e tudo, a ecologia governa a Terra. É fantástico que o papel estratégico
e metodológico, enormemente grande da água de uma bacia, se fundamenta nas
características infinitamente pequenas da estrutura das moléculas desta
substância, de características ímpares na natureza, capaz de ser portadora de
informações que circulam globalmente no ciclo hidrológico. Só precisamos
aprender a ler estas informações com a ajuda do método.
O Fórum Nacional dos CBHs do
Brasil e a Rede Internacional de Organismos de Bacia reunidos em Porto Alegre,
com grandeza de perspectivas, poderão fazer história no Brasil e no Mundo. Está
ao nosso alcance e nós podemos.
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