Comitê da bacia hidrográfica do Rio São Francisco-
A democracia que emerge das águas.
O Comitê da Bacia Hidrográfica do
Rio São Francisco, o chamado “Rio da Integração Nacional,” se converteu em
pouco tempo em verdadeiro laboratório criativo do Sistema Nacional de Recursos
Hídricos, dadas as características peculiares, as dimensões, a heterogeneidade
geopolítica, a diversidade econômica, a simbologia histórica, a cultura e os grandes
desafios socioambientais da bacia que representa e das populações que nela
habitam.
Instituído por decreto
presidencial de 5 de junho de 2001, o CBHSF já completou uma década de
construção coletiva da gestão hídrica da bacia, tempo em que acumulou grandes
conquistas e experiências que já podem ser compartilhadas sobretudo com novos
comitês de bacias hidrográficas, principalmente aqueles de grandes rios
federais, onde além de toda a diversidade de biomas, populações, economias,
climas e outros fatores, ainda se apresenta a diversidade dos interesses de
estados e municípios cujos territórios estão incluídos em seus limites. No caso
da Bacia do São Francisco ela se localiza no território de nada menos do que 6
estados (Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas), além de
pequena porção do Distrito Federal.
Ademais desses desafios
representados pelo gigantismo do seu território, a bacia formada pelo Rio São
Francisco e suas dezenas de afluentes tem um comitê que, além de tudo, foi
concebido para enfrentar e dar encaminhamento aos grandes conflitos gerados por
uma vasta e crescente gama de usos múltiplos da água, que tendem a entrar em
antagonismo cada vez maior com os limites restritivos de sua oferta.
Se por um lado o Rio São
Francisco e seus principais afluentes gozam da felicidade de ter suas nascentes
e grandes trechos iniciais situados em territórios das Minas Gerais
privilegiados pelas chuvas e grandes aquíferos, por outro lado tem a missão
hercúlea de atravessar um território de quase 1 milhão de quilômetros quadrados
de semiárido onde é, praticamente, a única grande opção hídrica no espaço
regional.
Em tais circunstâncias não é de
se estranhar que conflitos pelo uso das águas franciscanas se ampliem e se
intensifiquem, sobretudo em decorrência do crescimento econômico e do aumento
das populações da bacia propriamente dita e das bacias a ela fronteiriças.
Exemplos disso, só para nos fixarmos em dois casos emblemáticos, são as tensões
que foram causadas pelo polêmico projeto da Transposição e as que, nesse exato
momento, estão sendo provocadas por mais uma redução drástica da vazão a
jusante do Lago de Sobradinho, adotada como forma de atendimento às
vicissitudes geradas pela falta de planejamento mais rigoroso e participativo
do setor elétrico, vicissitudes essas expostas e agravadas pelas estiagens cada
vez mais prolongadas no território da bacia.
Praticada pelo setor elétrico
mais de uma vez desde 2001, a redução em 200m³/s (duzentos metros cúbicos por
segundo) da vazão mínima ecológica (1.300m³/s) a jusante de Sobradinho, causa
cada vez mais, fortes e crescentes impactos socioambientais, além de prejuízos
e transtornos também crescentes aos demais usuários das águas da bacia,
sobretudo nas regiões do Submédio e do Baixo São Francisco.
Situações como essa colocam cada
vez mais o CBHSF como o instrumento por excelência de intermediação dos
conflitos que os prejuízos e restrições de um uso hegemônico da água causaaos
demais usos múltiplos dessa mesma água. No caso em questão, o CBHSF tem reivindicado
de forma veemente que o setor elétrico brasileiro compense financeiramente as
empresas e companhias de abastecimento de água, pescadores, aquicultores,
empresas de navegação fluvial e outros usuários que sofrem recorrentemente com
as reduções de vazões adotadas para aumentar o nível de segurança hídrica no
reservatório de Sobradinho. É o CBHSF, também, que tem insistido, nas reuniões
mensais de avaliação dessas reduções de vazões, que a Bacia Hidrográfica do Rio
São Francisco passe a ter um tratamento estratégico diferenciado no contexto da
produção, distribuição e consumo da energia hidrelétrica no Brasil, bem como
passe a ser alvo de um urgente programa de diversificação de sua matriz
energética com vistas à utilização mais intensa das energias eólica e solar na
região.
Como um verdadeiro “parlamento
das águas” que vai se consolidando a olhos vistos, o CBHSF tende a abarcar todo
o grande debate que já se inicia e futuramente deverá se tornar ainda mais
aceso em torno das demandas cada vez maiores de uso das águas do São Francisco
e seus afluentes, em contraste com a capacidade cada vez mais declinante do
ecossistema para atender a todas essas demandas na quantidade e qualidade que
seus demandantes requerem.
Em tal situação, projetos como a
implantação de centenas de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH`s) nos
afluentes mais caudalosos do São Francisco, implantação altamente polêmica de
usinas nucleares, expansão da hidrovia do São Francisco, canais de irrigação
que Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e até o Piauí (que não faz parte da
bacia) estão ou vão construir projetos de grandes impactos ambientais como é o
caso da pretendida exploração do gás de xisto, tendem a se chocar cada vez mais
no universo caótico das demandas atuais por mais água, caso a política de
outorgas pelo direito de uso das águas não venha a sofrer uma criteriosa
reavaliação. E em tal reavaliação a presença do CBHSF será fundamental,
sobretudo através da revisão do Plano Decenal da Bacia cujo processo já foi
iniciado por deliberação da última plenária do Comitê.
Aliás, na esteira da revisão do
Plano Decenal está o maior de todos os desafios do CBHSF que é o de implementar
o “Pacto das Águas,” instrumento que configura um longo processo de negociações
e diálogos entre todos os usuários das águas franciscanas, aqui incluídos a
União, os Estados e Municípios, para a construção da sustentabilidade econômica
e ambiental na bacia e a compatibilização das demandas por mais água com os
limites de sua oferta. Em resumo trata-se de substituir a lógica do consumo
insustentável da água, hoje cegamente hegemônica na gestão hídrica, pela lógica
da maior “produção” dessa água e, também, a visão de que os rios da bacia não
são canais artificiais e sim ecossistemas onde a biodiversidade também deve ser
respeitada.
Para onde está indo o dinheiro da cobrança?
Ao lado desse empenho no
encaminhamento da solução dos atuais e futuros conflitos pelo uso das águas
franciscanas, o CBHSF tem se preparado para fazer uma aplicação criteriosa dos
recursos advindos da cobrança pelo uso das águas da bacia. Para tanto elaborou
e aprovou, com a participação de suas Câmaras Técnicas e sua agência de bacia,
a AGB Peixe Vivo, um Plano de Aplicação Plurianual (PAP) que nos próximos três
anos promoverá um forte planejamento e financiamento equilibrado de todas as
suas ações.
Do contexto desse financiamento
ressaltam os projetos de recuperação hidroambiental em todas as regiões
fisiográficas da bacia, conforme todo um processo de identificação
participativa desses projetos pelas quatro Câmaras Consultivas Regionais
(CCR`s) em que se divide o Comitê, ou seja, as CCR`s do Alto, do Médio, do
Submédio e do Baixo São Francisco. Já são mais de meia centena o número de
projetos aprovados, muitos deles sendo executados com intensa participação das
comunidades locais.
Outro viés desse investimento dos
recursos oriundos da cobrança (uma média de 20 milhões de reais são arrecadados
a cada ano) é o financiamento de Planos Municipais de Saneamento conforme
manifestação de interesse encaminhada por mais de 90 prefeituras municipais ao
CBHSF. Pelo menos 25 desses planos já foram selecionados mediante critérios
estabelecidos pela Plenária do comitê, devendo ser elaborados depois de
processos licitatórios sob a responsabilidade da AGB Peixe Vivo.
Os recursos oriundos da cobrança
também fortalecem as ações institucionais do CBHSF e graças a eles encontros,
seminários e audiências públicas têm enriquecido a agenda de eventos do comitê.
As audiências públicas para debate dos usos múltiplos das águas franciscanas, o
1º Encontro dos Comitês de Bacias Afluentes do São Francisco e o 3º Encontro
das Comunidades Indígenas da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco se
inscrevem nesse cenário de intensa articulação institucional dirigida à
construção do já aludido Pacto das Águas.
Nessa mesma linha de ação, o
CBHSF tem se aproximado dos governos municipais, estaduais e do governo federal
para interagir de forma mais abrangente nos grandes cenários dos investimentos
públicos e privados no território da bacia, ou seja, em área equivalente a
cerca de 8% do território nacional. O foco do CBHSF é de contribuir para
melhorar a eficácia desses investimentos, evitar paralelismos e superposição de
ações, desperdício de dinheiro público e, sobretudo, garantir a sustentabilidade
dessas ações e a influência do universo de usuários e da sociedade civil nesse
contexto. Para tanto o CBHSF está apoiando a reformulação do Conselho Gestor do
Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, do qual
espera, finalmente, fazer parte mediante decreto presidencial, bem como irá
colaborar estreitamente com a Secretaria de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano
do Ministério do Meio Ambiente no desenvolvimento do Projeto Interáguas.
Inserir o CBHSF de fato nesses
grandes cenários onde são tomadas as decisões que afetam ou dizem respeito à
toda a comunidade franciscana não é fácil. Em muitas instâncias de poder o
papel dos comitês ainda não foi ou não quer ser entendido. Ocorre, porém, que o
tempo se encarregará de mostrar que os comitês de bacias hidrográficas
configuram o espaço institucional mais adequado para garantir a gestão
sustentável dos recursos hídricos no Brasil. Consciente desse enorme desafio, o
CBHSF já colocou o pé na estrada para cumprir a sua grande e complexa missão.
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